As escolas públicas de boa qualidade contribuíam para nos igualar – isso lá pelos anos 50 e 60 – e ninguém pensava estar ofendendo ninguém, chamando o outro de “neguinho” por exemplo, que aliás era até uma expressão carinhosa. A religião já nos ocupava tanto com as nossas culpas pessoais, que não sobrava tempo para culpas coletivas, e por isso mesmo elas não existiam.
Tive colegas de classe negros e judeus, descendentes de europeus, árabes, orientais e hispânicos. Havia os tímidos e os populares, havia os estudiosos e os que viviam “pendurados”. Mas na época de provas, nos ajudávamos uns aos outros, e faziamos trabalhos em conjunto, visitando as casas uns dos outros, sem qualquer preconceito pelo fato de uns serem mais pobres e outros mais abastados.
Eu mesma, tão branquela, vivia numa casa extremamente humilde, mas nunca tive vergonha de receber meus colegas. Em alguns períodos precisei estudar à noite, onde se concentravam os estudantes que também trabalhavam, justamente os mais pobres. Quando perdi minha mãe, aos 17 anos, e por ter tido necessidade de faltar muitas aulas para cuidar dos meus irmãos menores, foi com o apoio deles que consegui recuperar as matérias, e graças ao incentivo deles que não parei de estudar nessa época.
Isso não aconteceu por uma questão de escolaridade, mas por aquele tipo de educação que se cultivava, e que ensinava, entre outras coisas, a solidariedade entre as pessoas. Independentemente da cor da pele e da classe social. Cresci cultivando a crença de que, por mais problemas e pobreza que o país enfrentasse, o Brasil era um lugar especial, onde todas as raças podiam se sentir irmanadas. Poderia haver preconceitos, pois preconceitos existem contra todo o tipo de coisa ...mas discriminação racial, jamais.
Afinal, preconceitos e discriminação são frutos da estupidez... e da ignorância. E eu acreditava, e acreditei sempre, que só havia um caminho a seguir no futuro, e que era o dos estudos, do desenvolvimento tecnológico e econômico, do crescimento e do conhecimento. Por isso, ao chegar à idade madura, é tão desconcertante concluir que caminhamos todos esses anos, como nação, na contramão daqueles sonhos e projetos.
O desenvolvimento tecnológico e o econômico existem, mas são apenas relativos, nada de realmente substancial. Mas continuamos também relativamente ignorantes e incultos, e agora caminhamos a passos largos no caminho de novos preconceitos e discriminações. ´Se não temos inimigos, combatamos moinhos de vento”. E então, quando menos esperamos, nos vemos reféns de um jogo político baseado em alimentar todo o tipo de discriminação.
O jurista Ives Gandra Martins escreveu, há poucos dias, um artigo sob o título: “Você é branco? Então cuidado!...” onde dizia: “Hoje, tenho a impressão de que o cidadão comum e branco é agressivamente discriminado pelas autoridades, a favor de outros cidadãos, desde que sejam indios, afrodescendentes, homossexuais ou se declarem pertencentes a minorias submetidas a possíveis preconceitos”.
A política de cotas no ensino superior foi a primeira, de uma lista de absurdos, ou como analisa o professor Gandra, “se um branco, um índio ou um afrodescendente tiverem a mesma nota em um vestibular, pouco acima da linha de corte para ingresso nas universidades, e as vagas forem limitadas, o branco será excluído de imediato em favor de um deles. Em igualdade de condições, o branco é um cidadão inferior e deve ser discriminado, apesar da Lei Maior.”
A questão da demarcação de terras indígenas também descambou para a ilegalidade, pois enquanto o artigo 231 da Constituição reserva a eles o direito às terras que ocupassem até 5 de outubro de 1988, lei infraconstitucional posterior deu-lhes o direito à terras que ocuparam no passado. Como comenta o jurista, “meio milhão de índios brasileiros – não contando os argentinos, bolivianos, paraguaios e uruguaios que pretendem ser beneficiados também – passaram a ser donos de 15% do território nacional, enquanto outros 183 milhões de habitantes dispõem dos demais 85%. Nessa exegese equivocada da Lei Suprema, todos os brasileiros não índios foram discriminados”.
A lista de absurdos é imensa, e passa por questões como a dos “quilombolas” beneficiados por lei que discrimina todos os demais cidadãos que não se enquadrem nesse conceito, a dos “homossexuais” que receberam verbas publicas para promover um congresso (discriminando assim todos os heterossexuais), legitimando invasões de terra quando a maioria dos trabalhadores têm que trabalhar muito para ter sua casa própria, e finalmente premiando com pensões milionárias minorias de pretensos prejudicados pela ditadura militar enquanto a maioria dos realmente prejudicados nunca recebeu nada...
Ao invés de promover a união, de ressaltar o orgulho nacional de um povo que sempre foi aberto a todas as raças, nosso governo parece mais interessado em promover todo o tipo de discriminação, dividindo-nos e contaminando o conceito de democracia. Se isso não é estupidez, deve ser de péssimas, misteriosas, não reveladas intenções.
Célia Borges