26 de março de 2010
NÚCLEO COLONIAL DO ITATIAYA VIVE CRISE DE IDENTIDADE: MUNICIPAL OU FEDERAL?
(Publicado no jornal Ponte Velha)
Os moradores do Núcleo Colonial do Itatiaya vivem uma situação, para dizer o mínimo, inusitada. Embora paguem IPTU há décadas, o que os caracteriza como propriedades urbanas, por se encontrarem além do portão de entrada do Parque Nacional do Itatiaia, vêm sendo submetidos nos últimos anos, a critérios impostos à áreas de conservação ambiental. Nessa condição, estão tendo acesso dificultado aos serviços municipais, como o recolhimento do lixo, e a outros igualmente básicos, como a manutenção da rede elétrica pela concessionária local.
O compromisso de preservar o meio ambiente é aceito, e até defendido, pelos moradores do Núcleo. Afinal, quando os proprietários originais – imigrantes europeus incentivados pelo governo brasileiro a vir para o país em projeto de colonização – compraram seus lotes na região, a área encontrava-se completamente devastada de sua cobertura vegetal. Nas décadas seguintes, por uma vocação natural e também por motivação empresarial, esses colonos dedicaram-se à restaurar a vegetação, criando uma admirável mata secundária, ao mesmo tempo em que desenvolviam a hotelaria e o turismo como opção econômica.
O Núcleo Colonial do Itatiaya foi criado em 1908, depois que a União adquiriu dos herdeiros do Visconde de Mauá, suas sete fazendas na Serra da Mantiqueira, num total de 48 mil hectares. Duas pequenas áreas foram demarcadas e dividas em lotes para venda aos imigrantes - em Itatiaya e Visconde de Mauá – que começaram a chegar ao país em dezembro do mesmo ano. Grande parte dos lotes foi adquirida até 1916, quando o governo federal emancipou os núcleos, retirando o apoio oficial e deixando os proprietários, com suas respectivas escrituras de posse, por conta própria.
Em 1924 foi criada uma Estação Biológica na região, subordinada ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, nos limites com o Núcleo. Além do apoio mútuo, dessa vizinhança surgiram memoráveis experiências, como a história de amor entre Josef Simon – depois proprietário do famoso Hotel Simon – e dona Lira, filha do administrador da Estação Biológica, cujos descendentes ainda fazem parte da comunidade. O Parque Nacional do Itatiaia só foi criado em 1937, por decreto do então presidente Getúlio Vargas, sendo a primeira reserva florestal do país, e motivo de orgulho para os moradores do Núcleo. Em suas definições técnicas, o decreto deixava de fora as propriedades particulares vizinhas, e englobava os cerca de 12 mil hectares da Estação Biológica.
O início do mal entendido, que criou uma pretensa “questão fundiária” entre o Núcleo e o Parque surgiu na década de 50, quando a então direção do Parque propôs a construção de uma cancela para controlar o acesso, e evitar o transito de caçadores que ameaçavam a fauna, e palmiteiros, entre outros predadores. Os moradores do Núcleo aprovaram a medida, já que eles mesmos vinham combatendo essas ações por seus próprios meios. Mas a direção do Parque decidiu melhorar a cancela e construir um pórtico, que acabou, por força do hábito, a ser confundido como o Portão do Parque.
O portão, segundo a legislação vigente, dá acesso ao Parque, mas não é o portão do parque, porque a estrada até a unidade de conservação atravessa, por quilômetros, as terras do Núcleo Colonial. Essa pode ser uma circunstância que induziu a erro o governo federal, quando em 1982, num decreto de ampliação do Parque para 30 mil hectares, incluiu as propriedades particulares do Núcleo Colonial. Não houve qualquer justificativa técnica para essa inclusão, e os termos do decreto não foram aplicados, por mais de 25 anos.
Os moradores do Núcleo Colonial do Itatiaya, nos seus cem anos, completos em 2008, já deram inquestionável demonstração do seu compromisso com a preservação do meio ambiente, de tal forma que suas propriedades hoje se confundem com a mata do Parque Nacional. Eles foram ponto de apoio às centenas de cientistas, estrangeiros e brasileiros, que estudaram a fauna, a flora e a geologia do Maciço do Itatiaia, com importantes trabalhos publicados em todo o mundo. E deram contribuições decisivas no combate aos incêndios que, ano após ano, vem consumindo grandes áreas de mata nativa do Parque.
Em 2007, na comemoração do 70º aniversário do Parque, o Ministério do Meio Ambiente apresentou um programa de monitoria, “ressuscitando” o decreto de 1982, e entre outras medidas, desmontando o Museu da Fauna e da Flora, para grande descontentamento da comunidade do município de Itatiaia, e anunciando a desapropriação das terras do Núcleo. E desde então, a direção do Parque tomou posse da área, como se já fosse sua propriedade, impondo restrições, intimidando os moradores do Núcleo, dificultando o acesso, inclusive dos hospedes dos hotéis, dos serviços básicos e dos meios de manutenção.
Em janeiro a questão foi parar na Justiça Federal, através de uma Ação Civil Coletiva da Associação dos Amigos do Itatiaia, que reúne os moradores do Núcleo. A Ação pede a anulação do decreto de 1982, por decurso de prazo, e questiona os propósitos ambientalistas do programa de monitoria, que quer instalar no local um ambicioso projeto de lazer, substituindo os donos dos hotéis por novos administradores, e instalando uma universidade de Biodiversidade e Gastronomia, com fluxo previsto de 1.500 alunos, além de professores e funcionários. Um dos aspectos do curso de gastronomia é estudar o uso culinário de espécies selvagens, sendo que as do Parque, muitas, senão a maioria, estão em extinção.
Enquanto aguardam a decisão da Justiça, o advogado da AAI, Dr. Antonio Lima, vem orientando os moradores do Núcleo a assumirem a jurisdição municipal, que lhes é garantida não só pelo pagamento do IPTU, mas pelo fato do Núcleo ter sido emancipado em 1916, e assim, ter sido desvinculado da jurisdição federal. Segundo ele, por isso mesmo, não estão sujeitos à tutela da direção do Parque. E conclui: “Interesses e direitos ligados ao meio ambiente, aos serviços e obras públicas e particulares, como conservação de via pública, corte de árvores, limpeza, remoção de lixo e entulho, construção, reforma e pintura das casas, entrada e saída de materiais, estão sujeitos ao licenciamento da Prefeitura Municipal de Itatiaia, na forma da Constituição e das Leis”.
Sem saber bem a que instância governamental pertencem, os moradores do Núcleo ainda não voltaram a recuperar o sono tranqüilo, que a paz do lugar costuma inspirar. Além de suas propriedades, a preservação do Parque também está em jogo, dependendo de decisão judicial.
(Na foto de Leila Heizer, o Bicho Preguiça parece encantado com as Marias Sem Vergonha, exemplo de integração entre o selvagem e o trazido pelo homem)
Célia Borges
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