15 de dezembro de 2007

VI - A Crueldade do Assistencialismo

Vivemos numa sociedade caótica, caracterizada por uma total inversão de valores – éticos, morais, religiosos – e o mais assustador dessa constatação é o fato de a maioria das pessoas não ter sequer a consciência disso. Quem nasceu até a década de 60 ainda teve a chance de conhecer um outro Brasil, no qual as desigualdades existiam, mas onde também se podia sentir, na população e nas autoridades, um sincero desejo de mudar. De melhorar. De evoluir. O Brasil das “Diretas já” e do “impeachment” do presidente Collor. O país das revoluções pacíficas e da esperança.
Naquele Brasil, as crianças e jovens internos na Funabem não eram necessariamente delinqüentes, mas apenas órfãos e pobres, que apesar das dificuldades, recebiam educação o suficiente para ter alguma perspectiva de cidadania. No qual as escolas públicas eram as principais referencias de educação, e só estudavam nas particulares os muito ricos ou os que tinham dificuldade de acompanhar o nível do ensino público, que era alto. Em que os professores tinham orgulho do seu trabalho e mereciam o respeito da sociedade.
Muitas coisas eram diversas do que são hoje, e essas mudanças são alvo de inúmeros estudos sociológicos e históricos, que podem nos ajudar a entender o quê e como aconteceu. Mas o resultado dessas mudanças é o que assistimos atualmente, que invade os nossos olhos e ouvidos, que nos assusta e nos envergonha. É o país do aprofundamento das diferenças sociais, da vitória do crime organizado, do incentivo ao preconceito racial, da falência das instituições...da ignorância e da desesperança.
Sei que muita gente que defende o “status quo” (desculpem, mas adoro latim, prefiro do que ficar citando expressões em inglês) vai querer esfregar na minha cara as últimas estatísticas econômicas, segundo as quais temos um crescimento razoável, aumento de consumo, redução da pobreza...nossas reservas cambiais há muito não chegavam a nível tão alto, “os fundamentos da economia” estão invejáveis, segundo nossos “papas” no assunto. Mas qual é o preço de todo esse sucesso? Uma economia de primeiro mundo, convivendo com uma Educação e uma Saúde de terceiro, quarto, quinto mundos...
Não quero aqui culpar apenas esse nosso governinho medíocre por todos os nossos problemas. No caso da Educação, por exemplo, a falência das escolas começou durante o regime militar, e de lá para cá, só fez piorar. Não atino com qual seria o interesse dos militares em desmantelar o ensino público, mas como estudantes e professores se destacaram na resistência ao autoritarismo, a retaliação pode ser uma explicação. Esse descaso, que durou décadas, levou a educação básica e média do país a uma espiral de decadência que, pelo visto, ainda não chegou ao fim.
Depois de duas gerações de crianças, jovens e adultos semi-alfabetizados, a classe política descobriu a preciosa balela: “brasileiro não sabe votar”. “Oba, então vamos nos aproveitar disso, vamos deixá-los ignorantes e votando errado, porque assim teremos uma chance de nos perpetuar no poder”. Se a classe política é uma entidade do tipo “o mercado” (aquele que fica nervoso e faz as bolsas despencarem, entende!!!) então é isso que deve ter pensado. Educação pra quê? Nós não temos quase nenhuma e estamos nos dando bem!!!
A última resistência do voto à ignorância e ao analfabetismo foi a eleição do “brilhante sociólogo” Fernando Henrique Cardoso. Que apesar de ser um intelectual, começou seu governo, não preocupado com melhorar a educação, mas em garantir sua própria reeleição. A ética, o respeito ao cidadão, que já tinham começado a ser detonados no governo Collor, viraram motivo de chacota para aquelas novas autoridades, respaldadas por um presidente que pra começar, ridicularizou seu antecessor, que tanto o ajudou a eleger-se; e em seguida esmerou-se em nos decepcionar com a famosa frase: “esqueçam o que escrevi”. Ética pra quê? Educação pra quê? Educados, eles não vão nos reeleger...
Resisto a aceitar o desonroso conceito segundo o qual “o brasileiro tem vocação pra desonestidade”, porque não é isso que mostra a minha experiência de vida. Vender seu voto não é opção para a maioria das pessoas que o faz, mas um caso de necessidade...e de ignorância. Quem se aproveita dessas circunstâncias, esse sim, é desonesto. Por isso, tem sido vantajoso para as novas gerações de políticos, criados na expectativa prioritária de “se perpetuar no poder”, deixar sempre a educação em último plano, aproveitando-se de um enorme contingente de eleitores sem o menor discernimento.
Mas afinal, também não é possível deixar os pobres e ignorantes morrerem de fome, e aí vem a última, mais cruel e covarde de todas as providências: deformar um precioso projeto do educador Cristóvão Buarque, o Bolsa-Escola, nessa excrescência assistencialista que é o Bolsa-Família, e outras “bolsas” que vieram de carona. A idéia de premiar a quem estuda foi transformada num incentivo, aliás definitivo, à falta de educação, ensino, cultura, cidadania,....etc, etc...
A matemática oficial esquece que as famílias já pobres estão sendo incentivadas a ter mais filhos, para aumentar a ajuda do governo, que aliás é irrisória e insuficiente. Não há qualquer incentivo ao estudo, que já se encontra depalperado no quesito de “motivação”. Nos meus tempos de escola, nós queríamos ser professores, engenheiros, advogados, arquitetos, médicos... hoje a garotada quer ser “jogador de futebol”, “modelo”, atores ou atrizes, ou no mínimo, participar de um Big Brother e ficar rico sem ter que trabalhar...nem estudar, é claro...
Fico pensando no enorme contingente de pessoas de todas as idades, mas principalmente nas crianças e jovens, cujos talentos para as ciências, para o esporte, para a literatura, para as artes...quanta gente vem se perdendo por falta de boas escolas, de ensino profissionalizante, e de oportunidades para se desenvolver e mostrar do que são capazes. No grande potencial humano desperdiçado, e que na maioria dos casos vai ser irrecuperável.
Há milhares de pessoas em presídios, em entidades correcionais, nas Funabem da vida, que poderiam estar estudando e se recuperando para assumir um novo papel na sociedade. Mas pra esses, não há recursos. Eles já não tiveram a escola que garantisse uma oportunidade melhor, e agora estão duplamente condenados, sem qualquer outra expectativa que não a de serem marginais.
Que é o que também espera um enorme contingente de beneficiados por programas assistencialistas, como o “Bolsa-família”. Porque sem educação, não há futuro. E o futuro do país vai estar comprometido enquanto não escolhermos representantes que tenham um compromisso com a educação, com o ensino, com a cultura. Que tenham a lucidez, o discernimento, a informação suficiente para perceber que não adianta “jogar uma rede de sardinhas, pra enganar o povo faminto”, mas que o melhor, o bom investimento, é nos ensinar a pescar.
Célia Borges