30 de março de 2008

ITATIAIA HISTÓRICA – Reliquias de Guignard no Parque Nacional


Um verdadeiro tesouro artístico, relíquia da arte moderna brasileira, se abriga discretamente no Parque Nacional do Itatiaia: as pinturas feitas por Alberto da Veiga Guignard nas portas, janelas, paredes e traves da cabana, e na sede do Hotel Donati, onde morou nos anos 40. Considerado um dos mestres da nossa pintura, seus quadros alcançam altas cotações no mercado de arte internacional, ao nível de Portinari e Tarsila do Amaral.

Embora não se comparem em valor à maioria de seus quadros, os trabalhos de Guignard no Hotel Donati são característicos de uma certa faceta do pintor, que transbordava criatividade além do limite das telas e outras bases tradicionais, e pintava sobre as mais variadas superfícies, atendendo a pedidos ou segundo sua própria inspiração.

Dono de uma personalidade das mais originais, a biografia de Alberto Guignard mostra que os inúmeros conflitos de sua vida pessoal se contrapõem a uma produção artística repleta de leveza e alegria, com destaque para as paisagens e cenas populares, com seus balõezinhos coloridos. O domínio rigoroso da técnica, desenvolvido através de seus estudos na Alemanha, se dilui numa busca de simplicidade, que o leva a ser frequentemente confundido como primitivo.

Guignard nasceu em Nova Friburgo, RJ, em 25 de fevereiro de 1896, e era portador do defeito físico conhecido como lábio leporino, característica que teve grande influência em diversos aspectos do seu comportamento, inclusive no relacionamento com as mulheres. Primeiro filho de Alberto José Guignard e Leonor Augusta da Silva Veiga, teve uma irmã, também Leonor, nascida em 1900. A família mudou-se para Petrópolis, ali permanecendo até 1906, quando o pai morreu por suicídio.

No ano seguinte a mãe casou-se com o barão Ludwig Von Schilgen, radicando-se em Vevey, na Suíça. Guignard foi mandado estudar agronomia e zootecnia em Munique, em 1915, mas adoeceu e voltou para casa. Percebendo o talento do filho para o desenho, a mãe matriculou-o em 1917 na Real Academia de Belas Artes de Munique, onde estudou, alternando períodos em Grasse, na França, e em Florença, na Itália, além de algumas viagens ao Brasil, para onde retornou definitivamente em 1929.

Em 1922 começou a participar de exposições na Europa. Em 23 casa-se com uma estudante de música alemã, Annie Doering, mas o casamento dura apenas a lua de mel. Sem sorte no amor, Guignard se recompensa na arte. Em 24 ganha menção honrosa no Salão Nacional de Belas Artes, em 28 participa do Salão de Outono de Paris e da Bienal de Veneza. Em 29 ganha medalha de bronze no Salão Nacional de Belas Artes, e expõe também no Salão dos Independentes de Paris e no IX Salão de Artes de Rosário, na Argentina.

A volta ao Brasil marca uma temporada de sucessos e intensa produção. No ano seguinte faz individual em Buenos Aires e participa da coletiva de arte brasileira no Art of Roerich Museum, de Nova York, ao lado de Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Ismael Néri e Anita Malfati, entre outros. Relaciona-se e merece o respeito de outros mestres, no Portinari e Di Cavalcanti. Também começa a dar aulas de pintura, o que viria a ser uma de suas grande alegrias, como um antídoto para a solidão. Os alunos passam a ser para ele uma família substituta.

Di Cavalcanti dizia que ele era um santo. Amigos e alunos referiam-se a ele, frequentemente, como um anjo ou uma criança. Num ponto todos concordavam: vivia com a cabeça nas nuvens. Era proverbialmente um distraído, o que era agravado por seus hábitos boêmios e pelo excesso de bebida. Vivia em dificuldades financeiras, mas quando vendia um quadro – e já vendia muito bem naquela época – gastava o dinheiro comprando balas e brinquedos para as crianças.

Essa generosidade também se manifestava quanto ao seu trabalho, e Guignard não era exatamente um bom gerente de sua produção: doava seus quadros para as moças pelas quais se apaixonava, platônicamente aliás, e também a amigos e conhecidos, trocando-os às vezes por quantidades de cerveja e outros materiais de que necessitasse no momento.

Em 1940, depois de uma temporada em Friburgo, sua terra natal, Guignard refugia-se em Itatiaia. Passando por graves problemas, não só de ordem financeira mas também de saúde, aceita o convite dde um amigo, Roberto Donati, para ocupar um cabana no hotel de sua propriedade no Parque Nacional do Itatiaia. De lá, nessa época, escreve uma carta ao amigo Portinari, declarando sua paixão pela natureza.

As pinturas feitas por ele nas portas externas e internas, janelas, vidraças, paredes e traves, tanto da cabana que ocupou quanto na sede do hotel, foram sua forma de pagamento pela hospedagem e hospitalidade. Elas são os exemplos mais frequentemente citados do transbordamento criativo, que produziu pinturas em janelas e móveis ainda preservados no Pouso Chico Rei e na casa de Rodrigo de Melo Franco de Andrade (ambas em Ouro Preto, MG), nas casas de Gerty Von Smigay e Caio Benjamim Dias, em Belo Horizonte, além de outras em Minas e no Rio, inclusive em objetos como oratórios e violões.

Muitos desses trabalhos foram destruídos, e outros tantos preservados, como uma Paisagem de Minas, de 1945, óleo sobre laje de 50m2, na Rua Caraça 200, em que a casa foi demolida mas a pintura preservada, e integrada ao prédio construído no lugar.

Célia Borges