9 de março de 2009

ALDEIA GLOBAL – Abuso sexual é doença social

O assunto é tão antigo quanto desagradável. E tão doloroso quando, possivelmente, além de qualquer esperança de solução. Mas é impossível calar quando, na véspera de um Dia Internacional da Mulher, vemos nas manchetes dos jornais a história aterradora de uma menina de nove anos de idade, com 33 quilos e 1,36 m de altura, grávida de gêmeos, e por isso levada à fazer um aborto. E por isso levada ao centro de tantas discussões de caracteres legais, sociais, filosóficos e existenciais. Das quais, aliás, ela não tem a menor consciência.
Somos seres “humanos”, mas dotados ainda de uma enorme carga de impulsos animais, e o que nos difere do restante da fauna é, não o tamanho do cérebro, mas a nossa capacidade de viver de acordo com regras sociais. Regras sociais essas que convencionamos chamar de civilização, e que são transmitidas – e não inatas – através das condições especiais que o nosso cérebro permite, como a cadeia de informações adquiridas através das artes, do folclore, das ciências, da filosofia, e da educação.
Isolado dessa “civilização”, não é difícil imaginar que um ser “humano” volte aos seus impulsos mais primitivos, em busca de sobrevivência, como qualquer outro ser da natureza. Mas “civilização” não é um conjunto de regras pronto e acabado, ele muda em cada sociedade, e existem até aquelas em que o incesto é permitido. Incesto permitido que é, aliás sujeito às suas próprias regras, e muito diverso de abuso sexual.
Os impulsos primitivos podem nos levar a atitudes anti-sociais, como à violência em seus múltiplos aspectos, mas não me lembro de nenhum tipo de violência mais vil e covarde do que aquele cometido por um adulto contra uma criança, e pior ainda se tratando da violência sexual, em que o agressor, através da ameaça, acredita poder garantir indefinidamente a sua impunidade. Comportamento que, aliás, não é de se encontrar em outras espécies do reino animal.
Vivemos sob séculos de influência da igreja católica, e de outras religiões e igrejas; somos herdeiros das milenares filosofia e da arte gregas, egípcias, romanas, em mais de dois séculos e meio de história conhecida. E nos últimos 60 anos alcançamos desenvolvimentos científico e tecnológico dignos das super-civilizações da ficção futurista. Então, se pressupomos que vivemos num mundo civilizado, esse tipo de violência simplesmente não poderia existir. Ou se existisse, no máximo seria a exceção tão inerente à regra, e não tomaria essa forma epidêmica, que é o que vemos acontecer diante dos nossos olhares atônitos. Uma maldade diante da qual nos sentimos tão impotentes...
O que pode levar um ser humano a agir assim, pior do que um irracional? Com certeza lhe falta educação, ou posicionamento social, ou expectativas econômicas, ou auto-estima. Ou tudo isso junto. Ou lhe faltou amor na infância. Ou foi vítima de abuso também, e agora trata de passar adiante o seu estigma psico-social. Não importa a origem do problema do ponto de vista individual, já que os motivos podem ser os mais variados. Se fosse só pobreza financeira, os ricos e poderosos não cometeriam os crimes de estupro e pedofilia. Mas o caso é que cometem, e com muito maior chance de impunidade. E infelizmente não é também só o caso de pobreza de espírito, embora essa seja tão comum entre nós, independente do grupo econômico-social.
A covardia é o denominador comum nesses casos de estupro, incesto e pedofilia, já que é importante não nos esquecermos que os meninos também são vítimas. O agressor não tem escrúpulos em usar o seu poder, seja pela força física, pela coação psicológica, ou até mesmo pela pressão econômica, para submeter outro ser humano aos seus intentos. Não é o sexo que dá prazer, é a violência. E uma violência que parece ser fruto de uma imaturidade irrecorrível, já que o cidadão não tem competência para relacionamentos satisfatórios com pessoas da sua idade, ou não tem auto-confiança suficiente para encarar o desafio de ter sexo como adulto.
Mas o principal foco dessa terrível situação deve se voltar para as vítimas indefesas dessa violência, geralmente tão desassistidas por aqueles que deveriam ser os responsáveis por defende-las, e condenadas a traumas psicológicos que vão acompanha-las por toda a vida, tornando-as culpadas diante da violência que sofreram, complexadas e inadaptadas para uma vida normal, e possivelmente sujeitas a cometerem ou serem complacentes com o mesmo comportamento, indefinidamente.
Se considerarmos os índices de gravidez em adolescentes, a quantidade de crianças desamparadas que são colocadas no mundo sem condições mínimas de sobrevivência, de subsistência, geradas sem amor e criadas sem afeto, de mães prematuras sem as condições de amadurecimento necessárias para a formação de uma família, então temos que ter consciência de que estamos diante de um problema de saúde pública, resultado de uma doença social sem qualquer esperança de controle.
Do meu modesto ponto de vista, como mulher e cidadã, só a educação pode reverter esse quadro trágico. Só através da educação, da cultura, do incentivo à auto-estima e do acesso à cidadania, o ser humano pode encontrar seu caminho para ser civilizado, para respeitar o outro, para impor limites aos seus impulsos primitivos. Só compreendendo que o mundo não é apenas o seu próprio quintal, e que a vida lhe oferece infinitas possibilidades de crescimento, evolução e amadurecimento, homens e mulheres poderão aprender as regras tão básicas do comportamento humano, que projetam sobre suas crianças o amor pela espécie e a esperança no futuro.
Educar é preciso. Amar é preciso. E antes de desabarmos no desânimo, talvez seja o caso de, como formiguinhas, cada um ir fazendo a sua parte. Se cada um de nós ficar atento, e evitar pelo menos um caso de violência, seja pelo exemplo ou pelo incansável discurso contra ela, já vai ter valido à pena.
Célia Borges