17 de fevereiro de 2008

XIII - Gosto não se discute...mas às vezes mata!!!

Gosto não se discute, já dizia a minha avó. Mas, desde que ela me disse isso, muito tempo já passou, e muita coisa já mudou nessa nossa aldeia global. Gosto não se discute, porque como se dizia, o que seria do azul se todos gostassem do amarelo...A afinidade de gostos pode aproximar as pessoas, fundamentar boas amizades, tanto quanto a diferença de gostos pode separa-las. Num mundo civilizado, seria o caso de “apenas” se discutir as diferenças, porque a discussão faz parte do aprendizado, do intercâmbio, da evolução do pensamento e do engenho humanos. Mas nesse nosso mundo caótico, e aparentemente enlouquecido, diferenças de gosto podem ser fatais.

Acho que se procurasse bem, encontraria muitos exemplos pra ilustrar esse comentário, mas ele é resultado de apenas um episódio, que li numa notícia de jornal: um cidadão, enfurecido com a altura do som e a qualidade da música (funk) tocada no carro de outro cidadão estacionado diante de sua loja, depois de tentativas de negociação e reclamações, apelou para a violência, abatendo o outro a tiros. Uma solução radical, tão ao gosto dos nossos dias...

Fico imaginando no que resultaria uma pesquisa de opinião sobre o fato, para se julgar quem dos dois tinha razão, se a vítima da tortura mental causada pelo som insuportável em altura e conteúdo, ou se a vítima dos tiros, afinal, vítima da sua própria falta de educação. Eu sou contra a violência sob qualquer pretexto, acredito que uma forma de violência não justifica a outra. Mas não posso deixar de reconhecer que houve uma violência causando outra.

Um colunista que comentou o fato, atribuiu parte da responsabilidade à tecnologia, sob o argumento de que “há algumas décadas, ninguém teria como infernizar a vida do outro” com um som invasivo e perturbador. Não dá pra negar que a tecnologia nos dotou de novas armas e recursos, que tanto podem ser usadas pra construir quanto pra destruir (quero evitar aquela história do bem e do mal, porque até isso, hoje em dia, é muito relativo). Como os computadores. Como os telefones celulares. Como os aparelhos de som cada vez mais potentes...

É muito provável que cada um de nós, alguma vez, já tenha sido vítima do mau uso de alguma tecnologia – pra não falar do puro e simples mau comportamento humano – sem nem por isso pensar em matar alguém. É licito imaginar que primeiro chamaríamos a polícia. Na falta de solução, apelaríamos para a Justiça. No máximo, “sairíamos no tapa” com o nosso detrator.

Mas o mundo real não vem funcionando exatamente assim, e o normal é que todas as instâncias citadas acima não dêem resultado. O trabalhador que paga seus impostos, que se esforça por ser um cidadão à altura das exigências sociais, pode se cansar de ser desrespeitado, em níveis municipais, estaduais e federais., E principalmente pessoais. E vai explodir suas frustrações e revolta em cima de quem está mais à mão. O outro cidadão ferrado, e mais mau educado, que explode sua revolta pondo o som aos berros no seu carro, pra todo mundo ver que “eu estou aqui”.

O gosto, ou a diferença de gostos, não é motivo pra tanta violência, mas pode ser um bom pretexto. O motivo pra violência, nesse e em tantos outros casos, é mais a falta de educação, a falta de cultura, de auto-estima, de consciência de cidadania – e acho que tudo isso faz parte da mesma “dieta saudável” que anda faltando no cardápio da maioria da população. Se um cidadão bem educado gosta de funk, ele vai ouvir sua música sem incomodar os vizinhos. Ele pode gostar do que quiser, mas não vai precisar transformar o seu gosto numa arma. Me pergunto se alguém já terá levado uns tabefes por conta de ouvir Bach, Beethoven, Mozart, Vivaldi, em alto e bom som...

Aceito que, na Aldeia Global, não será mais politicamente correto falar em bom gosto ou mau gosto. Cada um tem o direito de ter o gosto que quiser...Tive um amigo de colégio, muito espirituoso, que costumava dizer que “pra quem gosta de jiló, morcego é beija-flor”. A indústria e o comércio estão aí pra oferecer todas as possibilidades em matéria de equipamentos e generos musicais. Mas será que quem nunca teve acesso a outras possibilidades, terá alternativa senão gostar de funk? Quem nunca teve boa escola tem outra alternativa a não ser a de ser um analfabeto funcional? Quem nunca assistiu uma peça de teatro, nunca teve acesso ou foi influenciado a ler um bom livro, quem nunca viu outros programas de TV que não a pobreza cultural que 90% da programação oferece? Qual é a opção dessa pessoa? O que se pode esperar dela?

Mesmo correndo o risco de nadar contra a corrente, de não ser politicamente correta, me dou ao luxo de ainda viver de acordo com padrões de bem e mal, de bom e ruim. Se não vejamos: a violência é boa pra alguém? a ignorância é boa pra alguém? a grosseria? o desrespeito aos limites entre o seu direito e o do outro? a injustiça? a ganância dos poderosos? crianças abandonadas? Por mais tolerantes que tenhamos nos tornado, é uma irresponsabilidade não termos critérios. É assustador que estejamos perdendo a noção do que é licito, normal, aceitável, do que não é.

Me chamaram recentemente de tirana cultural – eu preferiria déspota cultural, porque me lembra os Déspotas Esclarecidos, e me consola do despotismo da ignorância sob o qual vivemos – porque impliquei com o tal de BBB. Prefiro ler um livro, por pior que seja (e aí eu tenho a opção de deixar de lado) do que perder meu tempo com esse tipo de programa. Sou tirana porque entre Beethoven e Frank Sinatra, eu fico com os dois, mas entre um deles e a Xuxa, não dá nem pra pensar, né...Sou tirana cultural porque acho que as escolas tinham o dever de ser melhores, e oferecerem a quem estuda, melhores oportunidades (ante a opção por exemplo, de ser uma grávida adolescente, a quem chamam de “cachorra”).

Em matéria de música, prefiro quase qualquer coisa do que funk – e afinal, temos tantas opções...Em matéria de vida, prefiro não agredir ninguém, seja com um som alto, com palavras ásperas, e menos ainda com uma bala de revólver (será que isso ainda existe?). Mas sigo exercendo meu despotismo cultural, porque preciso acreditar que as pessoas não precisam matar ou morrer, apenas porque gostam de coisas diferentes.

Célia Borges

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